Na semana passada, falei sobre o estudo divulgado pelo IPEA sobre a (falta de) preparação de nossos aeroportos com vista aos grandes eventos que teremos por aqui, especialmente Copa do Mundo e Olimpíadas. E falei sobre o famoso legado que é propagandeado, sempre que os tais eventos entram em discussão.
Pois o que me incomoda nessa história é que, na verdade, nunca se pensa no que é necessário no dia a dia de quem vive por aqui, com ou sem eventos, com ou sem pretextos.
Pois você sabia que, com passagem comprada, vôo no horário e tudo aparentemente certo, você pode não embarcar. Você sabia que você pode ser preterido? Pois vejam um trecho da resolução 141 da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), publicada no dia 9 de março de 2010.
CAPÍTULO III
DA PRETERIÇÃO DE PASSAGEIRO
Art. 10. Deixar de transportar passageiro com bilhete marcado ou reserva confirmada configura preterição de embarque.
Parágrafo único. Quando solicitada pelo passageiro, a informação sobre o motivo da preterição deverá ser prestada por escrito pelo transportador.
Art. 11. Sempre que antevir circunstâncias que gerem a preterição de embarque, o transportador deverá procurar por passageiros que se voluntariem para embarcar em outro voo mediante o oferecimento de compensações.
§ 1º As compensações de que trata o caput deverão ser objeto de negociação entre o passageiro e o transportador.
§ 2º Não haverá preterição caso haja passageiros que se voluntariem para ser reacomodados em outro voo mediante a aceitação de compensações.
§ 3º O transportador poderá solicitar ao passageiro a assinatura de termo específico reconhecendo a aceitação de compensações.
Art. 12. Em caso de preterição de embarque, o transportador deverá oferecer as seguintes alternativas ao passageiro:
I – a reacomodação:
a) em voo próprio ou de terceiro que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, na primeira oportunidade;
b) em voo a ser realizado em data e horário de conveniência do passageiro;
II – o reembolso:
a) integral, assegurado o retorno ao aeroporto de origem em caso de interrupção;
b) do trecho não utilizado, se o deslocamento já realizado aproveitar ao passageiro;
III – a realização do serviço por outra modalidade de transporte.
Art. 13. Em caso de preterição de embarque será devida a assistência de que trata o art. 14, exceto nos casos em que o passageiro optar por qualquer das alternativas previstas no art. 12, incisos I, alínea “b”, e II, alínea “b”.
Clique aqui para ler a resolução na íntegra.
Agora, leiam abaixo a história da Marcela.
Sexta-feira, quando fui fazer check in para um vôo da GOL, fui informada de que não poderia embarcar devido à preterição. Eu nunca tinha ouvido falar sobre isso, mas é uma manobra permitida pela ANAC.
Existem algumas justificativas para preterição, mas a razão da minha foi a companhia aérea ter percebido que algum vôo enfrentaria problemas por falta de tripulação. Ou seja, no meu lugar e no lugar de um rapaz, embarcaram dois tripulantes de outro vôo.
Como o meu vôo era o último da noite para o meu destino, a GOL me encaminhou para um hotel e reagendou minha viagem para o dia seguinte, em outro horário.
Pois bem, nada menos do que REVOLTANTE essa situação. Você paga a passagem, escolhe seu vôo de acordo com o melhor horário, se organiza para estar no aeroporto com antecedência, agenda seus compromissos e acaba absolutamente frustrado e impotente. Simplesmente, porque a operadora não consegue planejar corretamente a “logística” de sua tripulação!
(…)
Tentei ir à sala da ANAC, no Galeão, mas fui informada de que a agência está desativando, pouco a pouco, as salas de atendimento dos aeroportos. Interessante, não?
Restou ir à uma área para atendimento de ocorrências, onde fui aconselhada a entrar com uma ação. Embora a ANAC permita a operação, a justiça ainda pode me ajudar.
Agora, a grande questão é: por que a ANAC permite esse tipo de situação? Por que eu tenho que arcar com a falta de tripulação de um outro vôo?
Suspeito que seja muito mais barato e que gere muito menos ruído a GOL maltratar dois de seus clientes do que ter que cancelar um vôo inteiro. Mas, é isso mesmo? Tá certo isso?
Outra coisa revoltante foi o “verde” que o funcionário da GOL tentou jogar pra mim (e para o rapaz que passou pela mesma situação). Quando ele informou que a gente não poderia embarcar, disse que nós havíamos perdido o horário limite para check in. Sorte nossa é que ainda faltavam mais de 30 minutos e, na hora, pudemos contra-argumentar. No entanto, uma pessoa um pouco mais distraída ainda teria que pagar taxa para remarcação.
Copa do Mundo e Olimpíadas? Isso vai ser divertido.
Marcela Moreira
Há alguns detalhes muito interessantes na história. O primeiro, a falta de planejamento da companhia. No caso, foi a Gol. Sinceramente (e até prova cabal em contrário), tenho certeza que não é muito diferente nas outras.
Outro detalhe é que a legislação pune o consumidor e premia a falta de planejamento do prestador de serviço. É assim que a agência regula o mercado, premiando o lado mais forte da relação? Muito, muito bom mesmo. Mas para isso, tenho uma solução simples: basta a ANAC baixar uma resolução obrigando as companhias a reservarem um ou dois assentos em cada vôo, uma reserva operacional. Assim, se as passagens forem vendidas e os passageiros ficarem a pé, configura-se o overbooking. E logo, algum entendido do assunto dirá que isso não existe em lugar nenhum do mundo. Dane-se, jaboticaba só tem no Brasil e é uma delícia.
Por fim, mas não menos grave. Quer dizer que os funcionários da companhia aérea são orientados a tentar enganar os passageiros? Isso nunca será admitido, mas é claro que sim. Porque os funcionários são treinados (ou deveriam ser) à exaustão e não têm autonomia para tomar decisões fora do script.
Quer dizer, como disse a própria Marcela, “Copa do Mundo e Olimpíadas? Isso vai ser divertido.”
P.S.: Como assim, a ANAC está desativando as salas de atendimento nos aeroportos? Quer dizer, a quem o passageiro poderá recorrer quando houver problemas?
P.S. 2: A Gol colocou Marcela e o outro passageiro em um hotel e fez tudo o que manda a legislação. Ok, sua obrigação. Mas quem paga pela programação, de lazer ou de negócios, não importa, que os dois deixaram de cumprir?