O guardador de rebanhos

Foto: Anna Maria Island

Num meio-dia de fim de primavera, tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte,  tornado outra vez menino,
a correr e rolar-se pela erva e arrancar flores para as deitar fora,
e a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir-se de segunda pessoa da Trindade.
No céu, era tudo falso, tudo em desacordo com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério e de vez em quando se tornar outra vez homem e subir para a cruz, e estar sempre a morrer  com uma coroa toda roda de espinhos e os pés, espetados por um  prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura como os pretos nas ilustrações.
Nem se quer o deixavam ter pai e mãe como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas – um velho chamado José, que era carpinteiro e que não era pai dele,
E o outro pai, era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo, porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de ter. Não era mulher; era uma mala em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele que só que só nascera da mãe, e nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia em que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar, ele foi a caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro, fez que ninguém soubesse que ele  tinha fugido.
Com o segundo, criou-se eternamente humano e menino.
Com  o terceiro, criou um Cristo eternamente na cruz e o deixou pregado na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.
Depois, fugiu para o sol e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje, vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita, de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba frutas dos pomares,
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam,
E que toda gente acha graça,
Corre atrás das raparigas que vão em ranchos pelas estradas,
com as bilhas às cabeças e levanta-lhes as saias.

A mim, ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
aponta-me todas as coisas há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem nas mãos
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem-Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito-Santo, coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada.
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido” –
“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam á sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso, se chamam seres.”
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O menino Jesus adormece nos meus braços,
E eu o levo ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa, ao meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano, que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso, que eu sei com toda certeza,
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana, que é divina,
É esta minha cotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo, que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo,
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando, e rindo, e gozando nosso segredo comum que é o de saber por toda parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar, é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro,
Na companhia de tudo,
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois,
Como um acordo intimo,
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer, brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois, eu conto-lhe histórias de coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam no fundo do mar dos altos mares.
Porque ele sabe que a tudo isso, falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer os olhos e os muros caiados.

Depois ele adormece, e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas pro ar,
Põe uns em cima dos outros,
E bate as palmas sozinho,
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa,
Despe-me meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela  mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

Fernando Pessoa

Do armazém de secos e molhados

Ontem vi no Facebook que já há uma campanha para mudar o nome da rua Jangadeiros, em Ipanema, para Millôr Fernandes. Fui convidado a apoiar, aquelas coisas de redes sociais. Sinceramente, não sei o que pensar. Não que o sujeito não mereça a homenagem, mas sou daqueles que estranham muito algumas mudanças simples como nomes de ruas.

A curiosidade relacionada à tal campanha é que, há alguns anos (2008 ou 9, não lembro bem) tentaram mudar o nome da mesma rua para Leila Diniz. Houve abaixo-assinado entre os moradores, contra a mudança, e até comentários tragicômicos como o feito pela mãe do César Maia: “não quero morar em rua com nome de puta”.

Millôr era um sujeito que pensava, há quem diga por aí que foi o último (se não o único) pensador brasileiro. Não tenho conhecimento suficiente para concordar ou discordar. Mas o melhor dele é que, ao contrário de boa parte da turma de sua geração (inclusive de alguns que, como ele, foram da equipe do Pasquim), não tentava diminuir ou espezinhar o interlocutor que discordasse dele.

Enfim, cumpriu o ciclo e foi-se embora. A esta altura está sendo velado e será cremado em seguida. Ou seja, seu último desejo – exposto há mais de 40 anos no “Poeminha: última vontade” – não será realizado.

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.
Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr

P.S.: o poema e a foto brilhante (e sem crédito, infelizmente) foram pescados na seção Feira Livre do blog do Augusto Nunes.