Deixem-no em paz

Se estivesse vivo, Senna teria completado 50 anos no último domingo. E como deixei pra falar do tema depois de passado, todo mundo já viu em todos os sites, portais, TVs, jornais e o diabo a quatro, especiais sobre o ídolo contando pela enésima vez as histórias da sua vida, de suas vitórias, suas poles, vários detalhes inéditos e tal e coisa.

Como já escrevi antes, descobri a F1 e me apaixonei por ela no início da década de 80, acompanhando o primeiro título de Nélson Piquet. Por causa disso, nenhum argumento técnico vai me convencer que houve carro mais bonito que a Brabham BT 49C. Claro que há menções honrosas para a Lotus 72 preta e dourada de Fittipaldi e a Matra azul que Jack Stewart pilotou em 1969.

Quando Senna chegou à F1, para um garoto que mal tinha ultrapassado a marca de dez anos de idade, era só mais um piloto brasileiro para quem torcer, até a lendária corrida de Mônaco, em que – a bordo da Toleman – apavorou o ‘professor’ Alain Prost pela primeira vez. Sem falar, claro, de outras corridas históricas por Lotus e McLaren.

Mas, acostumado com o constante ‘troféu limão’ de Piquet, por não ter papas na língua e nunca puxar o saco de jornalistas (principalmente da TV oficial), sempre me incomodou o jeito muito certinho do piloto, que pensava em cada vírgula de cada frase que falava. Me incomodava sua relação com a Globo, me incomodava o jeito marqueteiro de levantar bandeirinhas do Brasil a cada vitória, a história muito mal contada da sexta marcha em sua primeira vitória no Brasil.

É inegável que Senna foi um dos maiores pilotos de todos os tempos. Imbatível em voltas voadoras, conseguiu poles com carros que – nas mãos de pilotos comuns – provavelmente não largariam entre os seis primeiros, além de uma série de outras qualidades. Ninguém é tricampeão mundial de qualquer esporte se não for um sujeito especial.

Só que para definir alguém como o melhor de todos os tempos, principalmente em função da impossibilidade de comparação de tecnologias, épocas etc etc etc, só há dois critérios: números ou gosto pessoal. Pelo primeiro, Schumacher é imbatível. Pelo segundo… Nélson foi muito mais completo que Ayrton. E esse é apenas o meu ponto de vista, sem querer fazer qualquer provocação aos apaixonados (e muitas vezes xiitas) torcedores de Senna.

Se não tivesse morrido em 94, provavelmente conquistaria mais um ou dois títulos e Schumacher não teria os números que tem. Talvez se aposentasse após a quinta conquista, após ter igualado Fangio. Hoje seria, muito provavelmente, um empresário de sucesso, talvez ligado ao automobilismo.

Se não tivesse morrido em 94, da maneira que morreu, com imagens transmitidas para o mundo inteiro, dificilmente moveria ainda hoje as multidões. Provavelmente seria reconhecido como o grande campeão que foi, mas sem a histeria que sucedeu seu falecimento.

Não estou escrevendo nenhuma novidade, muita gente já falou sobre isso. Mas tentem, só por alguns momentos, imaginar como seria Senna sem o histrionismo de Galvão Bueno, sem a batida na Tamburello. Só por um minuto, imaginem como seria sua vida sem a melodramática memória daquelas manhãs de domingo, sem o tema da vitória executado em modo fúnebre de novela mexicana.

Não faz sentido dar parabéns a quem já está morto. E seria bom tê-lo visto correr mais um pouco. Mas ele já foi, como todos nós vamos um dia. Então é obrigação de todo mundo deixar o moço em paz enquanto continuamos por aqui.

Pouca gente lembra, mas naquele mesmo final de semana de 94, Rubens Barrichelo quase morreu na sexta-feira, ao decolar na variante Bassa e praticamente picotar sua Jordan na tela de proteção. Roland Ratzenberger morreu no sábado, ao encher o muro da curva Villeneuve com sua Sintek. Ayrton, no domingo. E é bem provável que a sua morte – a última de um piloto de F1 em treino ou corrida, um tricampeão morrendo ao vivo – tenha sido o grande legado de sua vida. Pois de lá pra cá, o investimento em segurança foi absurdo, tanto nos carros de corrida (de todas as categorias) quanto nos de rua.

Senna, Prost, Mansell e Piquet

Então, independente de qualquer coisa, sem responsabilizá-lo pela alegria de ser brasileiro, por continuar aproveitando as manhãs de domingo, sem lágrimas forçadas de crocodilo, a imagem que faço questão de guardar do sujeito é desta foto aí: um grande piloto que brilhou entre outros grandes pilotos.

Um comentário em “Deixem-no em paz

  1. Penso de forma muito parecida. Sou um pouco mais antigo, acho outros carros mais bonitos, como o Brabham Alfa-Romeu que, se não me engano, foi pilotado pelo Lauda ou o próprio Piquet e o Lotus 72, que foi de uma beleza especial para a época. Mas concordo com a sua análise sobre o Senna apesar de ter torcido muito por ele. O Piquet era o meu favorito, talvez por ter-lhe acompanhado a carreira desde os tempos de Super-Vê no Brasil e seu jeito mais carne-e-osso. Sem querer comparar a competência técnica de piloto, é no lado do marketing pessoal que o Rubens mais deixa a desejar para o Senna. É a antítese das falas pensadas e formação de imagem. Sempre com declarações precipitadas ou obviamente equivocadas, comentários bobos e participações auto ridicularizantes and propagandas, faltou ao Rubens isso que Senna fazia tão bem (a ponto de nos incomodar), criar uma imagem pública que ia de bom garoto a herói nacional. Senna fez um bem enorme para a auto-estima do povo brasileiro e é assim que é bom a gente lembrar dele.

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