A volta dos cabeças de área

Foi preciso um dia inteiro para me reacostumar à rotina de trabalho, cidade grande, poluição, trânsito, metrô apertado e problemas congêneres.

E no recomeço das bobagens que costumo publicar por aqui, resolvi falar de Mano Menezes. Afinal, quando foi ‘confirmado’ o nome de Muricy, tratei de baixar o sarrafo. Mal sabia eu que o circo estava apenas começando. E infelizmente falarei o óbvio. Que falta de habilidade, que presunção, que prepotência de seu Ricardo, achando que bastava estalar os dedos e todos cairiam a seus pés.

No fim, por conta de uma briga política, o Fluminense fez questão de segurar seu técnico. E por falta de garantias de que seria o técnico da seleção até 2014, não importando os resultados do caminho, Muricy não fez muita força.

Para mim, como todos vocês podem ver dois posts abaixo, o que aconteceu foi muito bom para a seleção.

Se é verdade que não tenho grandes elogios a Mano, também é fato que não tenho grandes aversões. E até que me prove o contrário, é apenas um pouco menos retranqueiro que seu colega de profissão que trabalha no Fluminense.

Enfim, saiu ontem sua primeira lista e foi realizada sua primeira coletiva. E independente das minhas impressões sobre o sujeito, sua convocação e seu discurso (educado e simpático) apontam para uma melhoria significativa no modo de jogar do time nacional, se preparando – inclusive – para desmentir a mim e a muitos outros que o tem como retranqueiro.

Nomes estranhos à parte, como Jucilei e Renan (goleiro do Avaí), sua convocação e seu discurso prometem um time com meio de campo talentoso, substituindo brucutus e cabeças de bagre por armadores de verdade e cabeças de área (versão original, daqueles que sabem tocar a bola e sair jogando).

É claro que, como sempre, ninguém nunca estará satisfeito com todos os eleitos do técnico e, principalmente no início do trabalho, teremos de nos acostumar com alguns personagens estranhos. Apenas reflexo do período de testes natural. Deixemos o sujeito trabalhar.

Lágrimas de um príncipe da bola

Coincidências interessantes podem acontecer às vezes. Há alguns dias, escrevi sobre o carregador de pianos e usei o Andrade como exemplo. E aí, naquela zona em que se transformou a Gávea, Andrade foi chamado – de novo – para carregar o instrumento, agora de um jeito diferente, claro.

À beira do campo, como técnico interino, seria o responsável por comandar o Flamengo em uma partida difícil contra o Santos na Vila Belmiro, contra um tabu histórico, contra uma fase terrível do time. E acabou dando certo, sem muitas invencionices e com o time jogando mal (de novo), o Flamengo ganhou o jogo.

Mas a cena do jogo não foi a bomba de Adriano, a defesa de Bruno ou o gol contra de Pará que nos deu a vitória. A cena do jogo, do domingo, da semana, foi o desabafo emocionado de Andrade dedicando a vitória ao Zé Carlos, o Zé Grandão, que morreu dois dias antes de câncer e com a família em dificuldade financeira.

Eu, que me tornei Flamengo por causa daquele time, que tive uma camisa com o número 6 às costas, também me emocionei no sofá da sala. Pensei em um tempo em que – além de colegas de trabalho e pelo tempo em que conviviam nos clubes sem as transferências frenéticas a cada seis meses – os jogadores se tornavam amigos, desses que cuidam uns dos outros. Mas fiquei sem saber o que escrever sobre o assunto, a cena, as lágrimas.

Hoje, dois dias depois, encontrei o texto abaixo. Quando crescer, quero escrever assim.

AndradeCraque na antevéspera do desembarque dos bilhões de dólares e euros no mundo da bola, Andrade não ficou rico, como merecia. Equilibra-se na classe média com esforço, suando a camisa no time dos remediados, no duelo agravado pela infâmia dos salários atrasados que viraram DNA no Flamengo. Em campo, era ouro puro. Cabeça-de-área como não mais existe, marcava e atacava com igual magia, um espetáculo, cereja do bolo num time de almanaque. Não teve o devido sucesso na seleção exclusivamente pela trapaça da sorte, que o fez contemporâneo de Falcão e Toninho Cerezo. Tudo bem – quem o viu com a camisa 6 rubro-negra não se esquecerá nunca mais.

Hoje, Andrade seria multimilionário no alvorecer da idade adulta, como acontece, notícia velha, com qualquer Felipe Melo. A torrente de dinheiro que inunda o futebol (que não pararia em pé diante da mais branda investigação, mas isso é outra história) veio bem depois da sua aposentadoria. E o ex-superjogador vive dias plebeus, como auxiliar-técnico rubro-negro. Quis o destino que ele tapasse um buraco no permamente bundalelê do clube justamente numa partida difícil, fora de casa, com o Santos, algoz da vida inteira.

O Flamengo, zebra total, ganhou, vitória necessária, ainda que pouco decisiva, na monotonia dos pontos corridos. Os jogadores dos dois times encenaram as respostas protocolares, alegria e frustração contidas, desfiaram as declarações de sempre, receita desenxabida de bolo na era das reações pasteurizadas. Bem no meio deste deserto de sinceridade, Andrade chorou. Menos pela vitória, nada pelo sucesso efêmero no cargo que, desambicioso, não almeja. As lágrimas nascem da emoção de quem carrega na alma a devoção pelo jogo. Brasileiramente.

Andrade não tem Hummer para passar nos cobres, não se permite tropeços em negociatas com empresários, passa a léguas de amores hortifrutigranjeiros de uma tarde ou madrugada. Hoje, observa com a sabedoria dos cabelos brancos que sobem pelas têmporas o eterno bafafá das celebridades de ocasião em que se transformam, em 15 minutos ou menos, os boleiros mais desimportantes. Constata que alguns se enrolam na banalidade de um passe, muitos não sabem chutar, quase todos são incapazes de atuações magistrais como tantas que ele encenou, ao longo da vida.

Como no finzinho do inverno de 1981, na mágica noite em que o Flamengo enfrentou, num amistoso, o Boca Juniors de Diego Maradona, no Maracanã apinhado. O então melhor jogador do mundo posou de figurante que não viu a bola – porque Andrade tomou-lhe todas. Naquela jornada, e em muitas outras pelo time mágico, conjugou a sutileza no roubar de bola com a precisão cirúrgica no jogo ofensivo, coadjuvante que merece – e leva – o Oscar.

Ontem, chorou – pelo amigo Zé Carlos, morto dois dias antes, cedo demais, cruel demais, de câncer; pela pressão que sufoca o clube, subjugado a uma interminável dinastia de trapalhões; e, sobretudo, pela ajudinha que deu ao seu time de coração. No caminhar ao vestiário e à provável volta para a sombra (já já vem outro técnico, e outro, e outro), exumou a elegância dos tempos de jogador, a sabedoria dos craques e, com o pranto de quem não tem vergonha de mostrar-se humano, a sinceridade desaparecida do futebol ultraprofissional.

Príncipe de anteontem, Andrade dá poucos autógrafos, anda pela rua sem maiores assédios, é (muito) menos paparicado do que merece. Mas entende o valor da vitória, e sabe quando ela exige que lágrimas corram pelo rosto. Chora, por ser do tempo em que se jogava por dinheiro sim – mas por amor também.

Dias que não voltam mais.

Aydano André Motta (O chope do Aydano)